8 de jul. de 2008

O NOVO PAPEL DE UMA NOVA DEFENSORIA PÚBLICA

Davi Eduardo Depiné Filho, defensor público do Estado de São Paulo, Ex-Presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos (APADEP)


1. A DEFENSORIA PÚBLICA

Até a Constituição de 1988 apenas se considerava a atuação da Defensoria Pública, já institucionalizada em alguns Estados, como no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, na esfera judiciária ou processual.

Os parâmetros de atuação dos defensores públicos, ou de quem lhes faziam as vezes, eram fixados pela Lei n.º 1.060/50, que além de definir o sujeito destinatário do serviço, estabelecia a área de atuação do defensor[1].

O dever estatal consistia, portanto, na prestação de assistência judiciária gratuita, exclusivamente processual, ao necessitado, assim entendido como o indivíduo que precisasse recorrer à esfera penal, civil, militar ou trabalhista do Poder Judiciário.

Com o advento da Constituição de 1988, romperam-se as barreiras fixadas pela legislação ordinária, determinando o artigo 5º, LXXIV, ser dever do Estado prestar assistência jurídica, integral e gratuita, aos que comprovarem insuficiência de recursos.

No artigo 134, estabeleceu-se a Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados; outorgando a ela a responsabilidade pelo cumprimento do disposto no artigo 5º, LXXIV, do texto constitucional.

Ampliaram-se, assim, o horizonte da Defensoria e a esfera de proteção da população carente.

Assistência jurídica envolve bem mais do que a mera defesa de interesses de uma das partes em um processo judicial, abrangendo a atuação pré ou extrajudicial (soluções alternativas de administração de conflitos) e, principalmente, a informação ou conscientização do destinatário do serviço acerca de seus direitos.

Assistência integral, por sua vez, exige a atuação em prol de interesses meta-individuais, sem a qual, em determinadas situações, não seria possível conferir ampla proteção aos direitos dos indivíduos necessitados.

Eis, portanto, o novo espectro de atuação da Defensoria Pública, que sem negligenciar a defesa dos interesses jurídicos individuais, adquire legitimidade para atuação na defesa de interesses supra-individuais, inclusive difusos.

A atuação na proteção desses interesses é de natureza atípica, pois se torna desnecessário ou impossível a avaliação acerca da existência concreta de indivíduos necessitados, ou hipossuficientes, afetados. A mera possibilidade de que isso venha a acontecer, pelo princípio da integralidade da proteção (ou universalidade), é o que basta para justificar a atuação da Defensoria Pública.

A Lei complementar federal nº. 80/94, em seu artigo 4º, estabeleceu, em rol exemplificativo, as principais funções institucionais da Defensoria Pública
[2].


2. A DEFENSORIA PÚBLICA PAULISTA

Como é notório, o Estado de São Paulo demorou 17 (dezessete) anos para criar a sua Defensoria Pública. Atualmente, apenas o Estado de Santa Catarina não implementou a Defensoria Pública, muito embora em outros Estados, como Paraná e Goiás, ela não tenha de fato “saído do papel”.

A mora paulista deveu-se, em grande parte, pela pré-existência de uma instituição que, nos moldes da Defensoria Pública, realizava a prestação de assistência jurídica à população carente. Desde 1947, a Procuradoria do Estado, por intermédio da Procuradoria de Assistência Judiciária, exercia o mister, ajuizando inclusive ações contra o Estado de São Paulo
[3].

Embora existisse a PAJ, o mandamento constitucional não vinha sendo cumprido, o que se mostrou evidente com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45/2004, a denominada Reforma do Judiciário, que entre outras alterações constitucionais acrescentou um parágrafo ao artigo 134, assegurando à Defensoria Pública autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária.

Tal emenda foi o fator impulsionador para que um esboço de anteprojeto legislativo, gestado pelos Procuradores do Estado e amparado pela sociedade civil
[4], fosse encaminhado ao Governo do Estado e, em 2005, à Assembléia Legislativa.

Em 09 de janeiro de 2006 foi promulgada a Lei da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Dos cerca de 350 (trezentos e cinqüenta) Procuradores do Estado que atuavam na PAJ, 87 (oitenta e sete) exerceram o direito de opção previsto na Constituição paulista e repetido pela lei complementar estadual, tornando-se os primeiros Defensores Públicos do Estado de São Paulo.

A lei paulista é inovadora em diversos aspectos, pois além de incorporar o avanço promovido pela EC 45/04, reforçou o viés ideológico registrado na Lei complementar federal nº. 80/94.

A LC 988/06 trouxe expressamente para a Defensoria paulista os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, preconizados pela Carta Constitucional
[5].

As atribuições institucionais foram ampliadas, especialmente aquelas atinentes às funções outrora atípicas[6], estabelecendo-se uma inter-relação entre a Instituição e a Sociedade Civil, que muito além de mera destinatária do serviço, passou a ser considerada co-responsável por sua prestação.

Talvez seja essa a maior inovação da lei paulista da Defensoria, que divide com a comunidade a sua fiscalização interna e as escolhas políticas de atuação
[7].

A Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública, representada por um ouvidor escolhido pelo CONDEPE (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), que não pode ser defensor público, tem assento no Conselho Superior, observando e participando de todas as decisões e posturas assumidas pela instituição.

As pré-conferências regionais e a conferência estadual definirão o plano anual de atuação da Defensoria Pública, aprovado pelo Conselho Superior
[8], elegendo as prioridades e diretrizes conforme o anseio da comunidade.

Essa proximidade da defensoria com a comunidade é o fator legitimador de sua atuação e, simultaneamente, o principal veículo de reforço e exposição.

Convém, ainda, ressaltar a existência de Núcleos Especializados, que visam uma atuação concentrada em determinadas esferas jurídicas e uma maior proteção de interesses qualificados.

Todo esse arcabouço normativo torna a Defensoria uma instituição com funções muito superiores àquelas previstas pelo legislador de 1950. A atuação judiciária é apenas um dos galhos que salta de seu tronco, que ostenta diversas ramificações, visando à garantia efetiva e a proteção integral dos interesses da população carente.



3. CONCLUSÃO

Em um país com índices de pobreza e miserabilidade que, desprezadas as estatísticas, deixam envergonhada qualquer pessoa que tenha consciência do que se passa à sua volta, conferir instrumentos de acesso a uma ordem jurídica mais justa significa conferir cidadania. E mais do que ser, saber-se cidadão é condição essencial para exigir respeito para com seus direitos e simultaneamente respeitar os direitos alheios.

Eis a grande missão dessa nova Defensoria, um dos principais instrumentos postos à disposição de todos para a pacificação e transformação social.

Mas para cumprir tal mister, torna-se imprescindível o investimento estatal e o envolvimento da sociedade, estruturando essa nova instituição e dando-lhe condições reais para assumir tão importante função.

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[1] Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Parágrafo único – Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

[2] Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: I - promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses; II - patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública; III - patrocinar ação civil; IV - patrocinar defesa em ação penal; V - patrocinar defesa em ação civil e reconvir; VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei; VII - exercer a defesa da criança e do adolescente; VIII - atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais; IX - assegurar aos seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com recursos e meios a ela inerentes; X - atuar junto aos Juizados Especiais de Pequenas Causas; XI - patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado; (...) § 2º As funções institucionais da Defensoria Pública serão exercidas inclusive contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público.

[3] A maior parte das ações indenizatórias ajuizadas por familiares de presos mortos no caso “Carandiru” foi proposta pela Procuradoria de Assistência Judiciária.

[4] Em 2002 foi criado o Movimento pela Criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que contou com o apoio efetivo de mais de 400 (quatrocentas) entidades da sociedade civil.

[5] Artigo 2º - A Defensoria Pública do Estado é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e tem por finalidade a tutela jurídica integral e gratuita, individual e coletiva, judicial e extrajudicial, dos necessitados, assim considerados na forma da lei. Artigo 3º - A Defensoria Pública do Estado, no desempenho de suas funções, terá como fundamentos de atuação a prevenção dos conflitos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalidade, e a redução das desigualdades sociais e regionais.

[6] Artigo 5º - São atribuições institucionais da Defensoria Pública do Estado, dentre outras: I - prestar aos necessitados orientação permanente sobre seus direitos e garantias; II - informar, conscientizar e motivar a população carente, inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias fundamentais; III - representar em juízo os necessitados, na tutela de seus interesses individuais ou coletivos, no âmbito civil ou criminal, perante os órgãos jurisdicionais do Estado e em todas as instâncias, inclusive os Tribunais Superiores; (...) VI – promover: a) a mediação e conciliação extrajudicial entre as partes em conflito de interesses; b) a tutela dos direitos humanos em qualquer grau de jurisdição, inclusive perante os sistemas global e regional de proteção dos Direitos Humanos; c) a tutela individual e coletiva dos interesses e direitos da criança e do adolescente, do idoso, das pessoas com necessidades especiais e das minorias submetidas a tratamento discriminatório; d) a tutela individual e coletiva dos interesses e direitos do consumidor necessitado; e) a tutela do meio ambiente, no âmbito de suas finalidades institucionais; f) a tutela dos interesses dos necessitados no âmbito dos órgãos ou entes da administração estadual e municipal, direta ou indireta; g) ação civil pública para tutela de interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo; h) a orientação e a representação judicial das entidades civis que tenham dentre as suas finalidades a tutela de interesses dos necessitados, desde que não disponham de recursos financeiros para a atuação em juízo; i) a tutela dos direitos das pessoas necessitadas, vítimas de qualquer forma de opressão ou violência; j) trabalho de orientação jurídica e informação sobre direitos humanos e cidadania em prol das pessoas e comunidades carentes, de forma integrada e multidisciplinar; l) a tutela das pessoas necessitadas, vítimas de discriminação em razão de origem, raça, etnia, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, cor, idade, estado civil, condição econômica, filosofia ou convicção política, religião, deficiência física, imunológica, sensorial ou mental, cumprimento de pena, ou em razão de qualquer outra particularidade ou condição; (...) XII - contribuir no planejamento, elaboração e proposição de políticas públicas que visem a erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais; XIII - receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por entidades representativas da sociedade civil, no âmbito de suas funções.

[7] Artigo 6° - São direitos das pessoas que buscam atendimento na Defensoria Pública: (...) III - a participação na definição das diretrizes institucionais da Defensoria Pública e no acompanhamento da fiscalização das ações e projetos desenvolvidos pela Instituição, da atividade funcional e da conduta pública dos membros e servidores. (...) § 3° - O direito previsto no inciso III deste artigo será efetivado através da Conferência Estadual e das Pré-Conferências Regionais da Defensoria Pública, do Plano Anual de Atuação da Defensoria Pública e da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública, na forma desta lei.

[8] Artigo 31 - Ao Conselho Superior compete:
XIX - aprovar o plano anual de atuação da Defensoria Pública do Estado, garantida a ampla participação popular, em especial de representantes de todos os conselhos estaduais, municipais e comunitários, de entidades, organizações não-governamentais e movimentos populares, através da realização de conferências estaduais e regionais, observado o regimento interno;
Parágrafo único - Para os fins previstos no inciso XIX deste artigo, o Conselho Superior regulamentará e organizará a Conferência Estadual da Defensoria Pública e as Pré-Conferências Regionais, contando com o auxílio das Defensorias Regionais do Interior, da Capital e da Região Metropolitana.

4 de jul. de 2008

ENTREVISTA COM PIERPAOLO BOTTINI



Pierpaolo Cruz Bottini
É professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP. É Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e Coordenador regional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Foi Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça nos anos de 2005 a 2007.




1. A corrupção não é um infortúnio exclusivo do Brasil. Existe em qualquer parte do mundo. No caso do Brasil, o que causa perplexidade é a impunidade. Por que ela é tão grande em nosso país ?

A impunidade decorre de diversos fatores. Em primeiro lugar, da falta de mecanismos de transparência de gestão e de controle. Apesar de notáveis avanços, especialmente no âmbito federal (como a divulgação pela internet de todos os gastos do Governo), ainda há muito espaço para o desenvolvimento de políticas de acompanhamento das atividades dos poderes públicos. Em segundo lugar, uma vez apontado um ato de corrupção, os mecanismos de processo e julgamento deste ato são muito lentos e complexos. A morosidade do processo penal no país é grande e garante a prescrição de muitos casos. Nesse sentido, acredito que uma reforma no Código de Processo Penal, que está em andamento no Congresso Nacional, seria muito bem vinda.


2. Sabemos que justiça tardia não é justiça. Por que – diferentemente de outras áreas – a justiça não se moderniza ?

Dos poderes da República, talvez o Judiciário seja aquele com maior índice de modernização. Encontramos inúmeras experiências bem sucedidas de informatização no Judiciário. O problema é que estas experiências não são ainda suficientes para fazer frente ao numero de demandas na Justiça, cada dia maior. O Conselho Nacional de Justiça vem desenvolvendo um trabalho para coordenar os programas de informatização em todo o país, para racionalizar as atividades.
No entanto, outras soluções também devem ser apontadas para maior celeridade nos julgamentos. Além da informatização, é importante que sejam desenvolvidos meios alternativos de solução de conflitos (mediação, conciliação), para que os litígios sejam resolvidos sem necessidade de intervenção de um juiz. Existem experiências relevantes e interessantes nesse sentido em todo o pais, indicando que uma política de promoção destes instrumentos pode contribuir para a celeridade da solução de demandas.


3. O governo Lula criou a Secretaria de Reforma do Judiciário, na qual o senhor atuou. Houve avanços ? Quais ?

A criação da Secretaria reflete, na verdade, uma preocupação de toda a sociedade com a atual crise do Judiciário. As discussões sobre os problemas da Justiça deixaram de ser realizadas apenas por juizes, advogados e promotores. Hoje, a sociedade civil se apropriou deste debate, porque percebeu que o desenvolvimento econômico e social do país dependem, em parte, de um sistema judicial racional, eficiente, acessível e democrático. Nesse sentido, o Poder Executivo também entendeu que deveria participar da reflexão sobre as formas de aprimorar os serviços da Justiça, e criou a Secretaria.
Nos últimos anos, alguns avanços notáveis podem ser indicados. A aprovação de uma grande reforma constitucional em 2004 criou o Conselho Nacional de Justiça, órgão de planejamento nacional das atividades do Judiciário, e conferiu autonomia às Defensorias Públicas, fortalecendo este importante órgão responsável pelo acesso à Justiça no pais. Ademais, foram aprovadas doze leis que modificam o processo das demandas na Justiça, racionalizando os trabalhos e tornando a prestação judicial mais eficaz e rápida.


4. Em nosso país há uma acepção generalizada de que apenas vão para a cadeia integrantes dos grupos sociais caracterizados pelos "3 Ps" (pretos, pobres e prostitutas). Por que no Brasil, rico e poderoso não vai para a cadeia ?

Há um corte social na população carcerária, e este dado pode ser verificado em qualquer estudo do gênero. A moderna criminologia entende que o direito penal, muitas vezes, funciona como um instrumento de segregação social e racial. Este fato é muito grave, e demonstra a desigualdade na aplicação das normas e no controle de criminalidade no Brasil. Acredito que o desenvolvimento e o fortalecimento das Defensorias Públicas pode reduzir esta realidade, mas não solucionará o problema. A solução, na verdade, não se limita ao campo jurídico, mas exige que enfrentemos, no campo político, esta segregação racial, desenvolvendo a consciência critica da população e exigindo dos agentes públicos ousadia no desenvolvimento de políticas que superem tal situação.